Salvatore Cernuzio – Vatican News
Especialistas em normas canônicas a serviço do supremo legislador, o Papa. Há mais de um século, com todas as mudanças nos cargos ocupados, o núcleo do trabalho realizado pelo dicastério permaneceu inalterado. Sua tarefa é atualizar o texto dos dois Códigos, Latino e Oriental, ou seja, o núcleo central da legislação universal da Igreja. Dom Filippo Iannone ilustra as implicações do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, que ele dirige desde 2018, e cujo balanço de missão nos dados oficiais de 2021 da Santa Sé, faz parte dos 21 milhões do orçamento destinado para os cerca de trinta dicastérios e instituições do Vaticano.
O seu dicastério tem a tarefa de ajudar o Papa em sua função de “legislador universal” através da interpretação autêntica das leis da Igreja. Em que consiste esta missão e quais são os critérios que a orientam?
As competências e atividades do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos estão definidas na Constituição Apostólica Pastor Bonus sobre a Cúria Romana, promulgada por São João Paulo II em 1988, e agora, como se sabe, está em processo de reforma. O Dicastério, como Comissão, surgiu no contexto da codificação canônica de 1917, com a tarefa de interpretar as leis universais da Igreja. Quando era identificada uma norma cujo significado não era claro para todos ou que poderia se prestar a diferentes interpretações, com consequentes aplicações diferentes, a Comissão, com a ajuda de consultores especializados, estudava o problema e propunha uma resposta a ser submetida ao Santo Padre para promulgação. Assim foi feito durante décadas, mesmo após a promulgação do novo Código de Direito Canônico em 1983, o Código para a Igreja Latina, e em algumas ocasiões os textos dos cânones também foram modificados quando isso pareceu necessário por motivos doutrinários ou disciplinares. Mais tarde, quando o Código dos Cânones das Igrejas Orientais foi promulgado, as mesmas tarefas foram estendidas a este texto legislativo. Entretanto, a Comissão tornou-se Pontifício Conselho.
Embora hoje sua competência se estenda a outros assuntos, em resumo, pode-se dizer que o Dicastério se ocupa principalmente em manter atualizado o texto dos dois Códigos, Latino e Oriental, que representam o núcleo da legislação universal da Igreja. Realiza esta tarefa interpretando textos duvidosos e, se necessário, propondo ao Santo Padre emendas ou acréscimos aos textos dos cânones quando isto se tornar necessário. De fato, em junho passado, o Papa promulgou um novo Código de Direito Canônico, o Livro VI sobre Disciplina Penal, no qual o Dicastério vinha trabalhando há mais de uma década, envolvendo as Conferências Episcopais dos diversos países, os Dicastérios da Cúria Romana e as Faculdades de Direito Canônico operantes em Urbe et in Orbe, como se costuma dizer.
Além desta tarefa, o Pontifício Conselho também assiste o Romano Pontífice em seu trabalho como Legislador Supremo. Isso é realizado com a colaboração direta do Pontifício Conselho ao Papa na elaboração de todas as medidas de natureza jurídica. O Papa Francisco, também, ao implementar as reformas que empreendeu, que obviamente exigem a produção de textos normativos, se vale do trabalho de nosso Dicastério, expressando assim sua confiança em nossa atividade.
Uma expressão desta tarefa também pode ser considerada a atividade de colaboração do nosso Pontifício Conselho com os outros Dicastérios da Cúria Romana – que é o órgão através do qual o Sumo Pontífice exerce seu ministério como Pastor da Igreja Universal – sempre em assuntos de direito canônico.
Como combinar este trabalho de interpretação com a necessidade de que o direito canônico acompanhe os tempos e atenda às exigências mutáveis da Igreja a caminho na história do mundo?
O Dicastério está em contato com as diferentes instâncias da Igreja, em particular os Dicastérios da Cúria Romana e as Conferências Episcopais, para poder identificar a necessidade de eventuais mudanças nas normas, ou para acolher sugestões de novas normas. Como diz o famoso ditado, o direito segue a vida. No Dicastério trabalhamos sobre a legislação universal, comum a toda a Igreja, cabe então às Conferências Episcopais e sobretudo aos Bispos diocesanos declinar a lei universal e aplicá-la às necessidades concretas dos vários lugares e culturas. Neste contexto, é tarefa do Pontifício Conselho assegurar que as leis dadas pelos Bispos ou pelas Conferências sejam congruentes com a lei universal, também é possível, se necessário, que os interessados contestem perante o Dicastério normas locais que sejam consideradas em contraste com as dadas pelo Papa. Para tanto, o Pontifício Conselho para os Textos Legislativos está encarregado de examinar os decretos emitidos pelos órgãos episcopais e verificar sua congruência com a lei universal da Igreja. A descentralização, mesmo na esfera jurídica, hoje é uma necessidade sentida mais do que nunca, mas deve ser alcançada preservando a unidade da Igreja. O Papa Francisco em sua primeira exortação apostólica, Evangelii gaudium, fala de uma salutar “descentralização“.
Quais competências são necessárias e como é organizado o trabalho no dicastério? Como os objetivos da missão do dicastério se refletem no balanço econômico e na gestão de seus recursos?
Como pode ser facilmente deduzido das tarefas do Pontifício Conselho descritas acima, as habilidades necessárias para os que trabalham conosco são no campo jurídico. Todos os oficiais do dicastério são obrigados a ter uma qualificação acadêmica em direito canônico. Também é necessário um certo conhecimento de idiomas modernos, além do latim, para poder atender aos pedidos de consulta, provenientes de vários países. Em geral, os oficiais que são contratados pelo Dicastério também têm experiência neste âmbito da vida eclesial, tendo realizado em suas dioceses ou institutos, se religiosos, ministérios pressupõem o conhecimento do direito. A competência é assim acompanhada pela experiência pastoral, que certamente qualifica não apenas seu trabalho, mas a atividade do próprio Dicastério.
Como Dicastério da Cúria Romana, o Pontifício Conselho está estruturado de acordo com as normas da Constituição Apostólica Pastor Bonus. É dirigido por um Presidente, coadjuvado por um Secretário e um Subsecretário, e é composto por membros escolhidos pelo Papa entre Cardeais e Bispos de todo o mundo. Na sede, temos alguns oficiais que trabalham em presença. Na realidade, em comparação com outras Congregações, este número de presenças é pequeno, devido ao tipo de trabalho do Dicastério, para o qual pode-se recorrer à colaboração, como dizemos hoje, à distância. De fato, conta com um grande número de consultores, professores e especialistas em direito canônico ou eclesiástico de todo o mundo, aos quais é solicitada sua opinião sobre as questões mais complexas.
A atividade do Dicastério é qualificada como um serviço aos órgãos centrais da Igreja Católica e às Igrejas particulares e seus Pastores, bem como a outras instituições eclesiásticas, se solicitado. Como tal, é completamente gratuita. As despesas do Dicastério estão a cargo da Santa Sé. Como é sabido, a Santa Sé se mantém também com o apoio econômico das comunidades eclesiais de todo o mundo. Estes, considero, estão bem conscientes de que nosso serviço, em última análise, contribui para assegurar o exercício do ministério apostólico por parte do Papa, para o bem da Igreja universal e de cada Igreja particular, e por isso sentem o dever de colaborar de acordo com suas possibilidades.
Como são recebidos os pedidos dos pastores das Igrejas locais e que tipo de ajuda lhes é oferecido para a correta interpretação e aplicação do direito?
De fato, uma grande parte de nosso trabalho é dedicada a responder a perguntas sobre questões concretas que nos chegam dos bispos diocesanos, dos tribunais eclesiásticos, dos Superiores Religiosos. De fato, o Dicastério recebe solicitações precisas relativas não tanto ou não diretamente à interpretação autêntica dos cânones, mas à sua aplicação a casos individuais que ocorrem na vida diária. Estes pedidos dizem respeito a todos os tipos de assuntos ligados com o direito e o Pontifício Conselho tenta respondê-los prontamente, obviamente após cuidadoso estudo da questão, também levando em conta a prática estabelecida da Cúria Romana.
Estas respostas, entretanto, devem ser entendidas como pareceres sobre casos individuais, não tendo qualquer valor vinculativo para o questionador, a menos que sejam referências à lei em vigor. Podemos dizer, no entanto, que se trata de um parecer oficial de um Dicastério da Santa Sé sobre o assunto da consulta, que é geralmente o que os questionadores exigem, a fim de serem mais seguros no exercício do seu governo pastoral.
Como é a formação dos que são chamados a trabalhar no campo do direito canônico?
Acredito que as novas regulamentações que implementam as reformas desejadas e empreendidas pelo Papa Francisco estejam também contribuindo para uma maior atenção à formação dos que estão destinados a ocupar cargos e ofícios para os quais se requer o conhecimento do direito. Eu diria que os preconceitos que se manifestaram em épocas passadas contra o direito na Igreja agora podem ser considerados superados.
As recentes reformas jurídicas, como a reforma dos processos matrimoniais e, mais recentemente, a reforma do direito penal canônico, levaram a uma maior atenção por parte dos superiores à formação específica dos trabalhadores oficiais, clérigos e leigos, neste setor. De certa forma, foi descoberta novamente a necessidade do direito na vida da Igreja. Todos os Sumos Pontífices do período pós-Concílio falaram desta necessidade, referindo-se ao Magistério do Concílio Vaticano II. De São Paulo VI a Francisco. O próprio Papa Francisco, em seu discurso à Assembleia Plenária de nosso Dicastério, afirmou: “Fazer conhecer e aplicar as leis da Igreja não é um obstáculo à suposta ‘eficácia’ pastoral daqueles que querem resolver os problemas sem o direito, mas uma garantia da busca de soluções não arbitrárias, mas verdadeiramente justas e, portanto, verdadeiramente pastorais. Evitando soluções arbitrárias, o direito torna-se um válido baluarte válido em defesa dos últimos e dos pobres, escudo protetor de quantos correm o risco de cair vítimas dos poderosos“.
É possível conciliar a aplicação rigorosa da lei com a misericórdia e a caridade que a ação pastoral exige?
Esta é precisamente uma das características fundamentais do direito canônico, que o distingue de outros sistemas jurídicos que infelizmente hoje estão cada vez mais ancorados em um profundo positivismo. O direito canônico, que ensina como interpretar e aplicar corretamente a lei da Igreja, é uma lei baseada na lei natural e na lei divina, que são, em última instância, os parâmetros de justiça a serem seguidos pela autoridade eclesiástica. Portanto, a lei canônica dá a quem exerce autoridade todos os instrumentos necessários para adaptar o rigor e as exigências da lei à justiça no caso concreto, ou seja, não esquecer as exigências de caridade e misericórdia ao aplicar a lei. Bento XVI dizia que “o direito é condição do amor”.
Para Santo Tomás, “a misericórdia sem justiça é a mãe da dissolução, a justiça sem misericórdia é crueldade“. A misericórdia não age contra a justiça, mas acima dela, levando-a ao seu cumprimento. Ela evita o rigor do direito e a rigidez de sua tecnicidade, impedindo que a palavra mate. Por isso caridade e misericórdia caracterizam sabiamente a justiça da Igreja. Segundo o Código de Direito Canônico, “os fiéis têm ainda o direito de serem julgados com observância das normas do direito, aplicadas com equidade” (Cân. 221, § 2). O juiz, portanto, fará uso de Aequitas canônicas fazendo prevalecer o direito temperado pela caridade e levando em conta tudo o que a caridade sugere (iustitia dulcore misericordiae temperata). São João Paulo II chegou a afirmar que “a misericórdia autêntica é, por assim dizer, a fonte mais profunda da justiça” (Dives in Misericordia, n. 14).
Material Original: O Pontifício Conselho para os Textos Legislativos – Vatican News