Sistema de regulação tríplice dos agrotóxicos no Brasil corre risco com o “PL” do veneno
O sistema de regulação tríplice de agrotóxicos e pesticidas vigente no país, que consiste em liberar os agrotóxicos para comercialização somente depois da análise dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente corre sérios riscos de ser desmantelado caso o Projeto de Lei nº 6.299, mais conhecido como PL do Veneno, seja aprovado e sancionado. Se aprovado, apenas o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa terá o poder de liberar os agrotóxicos sem passar por controle de seu impacto na saúde da população. Trata-se de uma série de retrocessos para a saúde e o meio ambiente na avaliação da pesquisadora da Fiocruz, Aline do Monte Gurgel, em entrevista concedida ao site IHU, em 13/08/2018, e republicada pela Cáritas brasileira.
“Acontece que os órgãos de Saúde e do Meio Ambiente realizam suas avaliações de toxicidade com base em critérios técnicos que são observados por especialistas da área, buscando zelar pela defesa da saúde e proteção da vida. Como o Mapa não possui competência técnica para realizar tais análises, o processo de avaliação dos agrotóxicos pode se tornar um mero procedimento burocrático realizado sem o rigor técnico e científico necessários, uma vez que ele não possui expertise para realizar tais análises. Essa concentração de poderes no Mapa deixa esse Ministério ainda mais vulnerável aos interesses do mercado”, adverte.
Em 2017, 13.982 pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos segundo levantamento do Ministério da Saúde. Quantidade ainda maior que os 12.261 casos relatados em 2016 — ano em que 492 pessoas pelo mesmo problema, segundo dados da pasta. Esses são apenas os casos que foram notificados. O número pode ser 50 vezes maior, pelas estimativas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Significa dizer que, só no ano passado, quase 700 mil pessoas podem ter sido vítimas diretas do mau uso de agrotóxicos no Brasil, se forem tomados como base os números fornecidos pelo ministério.
“Praticamente todos os casos notificados são de intoxicações agudas, porque é mais fácil estabelecer uma relação causal nessas situações, onde os sinais de intoxicação surgem pouco tempo depois da exposição. Os casos crônicos, onde os sinais de intoxicação demoram mais tempo para aparecer, dificilmente são diagnosticados e notificados, dificultando precisar o número de ocorrências no país”, relata a pesquisadora.
De acordo com Aline, não existe “exposição segura aos agrotóxicos”, porque “o perigo é uma das características intrínsecas” ao produto. A noção de “uso seguro” dessas substâncias, alerta, “é um conceito disseminado majoritariamente pelo agronegócio, que precisa vender a ideia de que as pessoas podem se expor aos agrotóxicos sem que haja intoxicação”. O problema é agravado pelo fato de que os pesticidas escolhidos pelos produtores brasileiros são os mais prejudiciais do mercado, segundo a ONG Pesticide Action Network International. De acordo com a organização, dos 10 agrotóxicos mais usados no Brasil em 2016, nove são considerados altamente perigosos. Quatro deles não estão autorizados para uso na Europa, por exemplo.
Problemas de saúde – A exposição aos agrotóxicos está associada ao surgimento de diversos problemas para a saúde, desde casos de intoxicação aguda, cujos sinais mais brandos de intoxicação podem incluir náuseas, vômitos e dores de cabeça, a doenças graves como o câncer e Parkinson, além de danos potencialmente irreversíveis e fatais, como mutações genéticas, casos de malformação do feto ainda na barriga da mãe e abortos.
Segundo a especialista, as pessoas se expõem ao veneno, por diferentes vias e em diferentes situações. Pode haver exposição dietética, que se dá pelo consumo de alimentos contaminados com resíduos de agrotóxicos, sejam eles in natura (como frutas e verduras), ultraprocessados (como massas e salgadinhos) ou de origem animal (leite e carne de animais que se expuseram previamente aos agrotóxicos).
A exposição também pode ser ambiental, quando a pessoa entra em contato com solo ou água contaminados com resíduos de agrotóxicos, ou por meio da exposição ocupacional, que é quando o contato com o veneno se dá no processo de trabalho, seja ele em uma fábrica que produz agrotóxicos ou no campo, durante a aplicação dos venenos agrícolas, por exemplo.
A pesquisadora reforça que é a exposição não acontece por um comportamento inadequado da população ou por meio de “atos inseguros” dos trabalhadores que manuseiam agrotóxicos; a toxicidade é uma característica dos agrotóxicos, como o próprio nome diz, e, mesmo que sejam adotadas medidas para reduzir a exposição, o perigo não é eliminado.
Projeto de Lei – O PL do veneno, cuja autoria é do atual ministro Blairo Maggi, líder da bancada ruralista no Congresso Nacional. Aprovado em Comissão especial com parecer favorável do relator, também ruralista, deputado Luiz Nishimori (PR-PR), por 18 votos a 9, tem sido condenado por diversas instituições, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Greenpeace, o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Fiocruz, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre outras. A medida é execrada por cerca de 280 entidades e diversos segmentos sociais.